O
Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de
alimentos em proveito de criança ou adolescente, independentemente do
exercício do poder familiar dos pais, ou de o
infante se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou de quaisquer outros
questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública
na
comarca. De fato, o art. 127 da CF traz, em seu
caput,
a identidade do MP, seu núcleo axiológico, sua vocação primeira, que é
ser “instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”. Ademais, nos incisos I a VIII do mesmo dispositivo, a CF
indica, de forma meramente exemplificativa, as funções institucionais
mínimas do MP, trazendo, no inciso IX, cláusula de abertura que permite à
legislação infraconstitucional o incremento de outras
atribuições, desde que compatíveis com a vocação constitucional do MP.
Diante disso, já se deduz um vetor interpretativo invencível: a
legislação infraconstitucional que se propuser a
disciplinar funções institucionais do MP poderá apenas elastecer seu
campo de atuação, mas nunca subtrair atribuições já existentes no
próprio texto constitucional ou mesmo sufocar ou criar
embaraços à realização de suas incumbências centrais, como a defesa dos
“interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF) ou do
respeito “aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (art.
129, II, da CF). No ponto, não há dúvida de que a defesa dos interesses
de crianças e adolescentes, sobretudo no que concerne
à sua subsistência e integridade, insere-se nas atribuições centrais do
MP, como órgão que recebeu a incumbência constitucional de defesa dos
interesses individuais indisponíveis. Nesse particular,
ao se examinar os principais direitos da infância e juventude (art. 227,
caput, da CF), percebe-se haver, conforme entendimento
doutrinário, duas linhas principiológicas básicas bem identificadas: de
um lado, vige o
princípio da absoluta prioridade desses direitos; e, de outro lado, a
indisponibilidade é sua nota predominante, o que torna o MP naturalmente
legitimado à sua defesa. Além disso, é da própria letra da CF que se
extrai esse dever que transcende a pessoa do familiar envolvido,
mostrando-se eloquente que não é só da família, mas da sociedade e do
Estado, o dever de assegurar à criança e ao adolescente, “com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação” (art. 227,
caput),
donde se extrai o interesse público e indisponível envolvido em ações
direcionadas à
tutela de direitos de criança e adolescente, das quais a ação de
alimentos é apenas um exemplo. No mesmo sentido, a CF consagra como
direitos sociais a “alimentação” e “a proteção
à maternidade e à infância” (art. 6º), o que reforça entendimento
doutrinário segundo o qual, em se tratando de interesses indisponíveis
de crianças ou adolescentes (ainda que individuais), e
mesmo de interesses coletivos ou difusos relacionados com a infância e a
juventude, sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo. Além
do mais, o STF (ADI 3.463, Tribunal Pleno, DJe 6/6/2012) acolheu
expressamente
entendimento segundo o qual norma infraconstitucional que, por força do
inciso IX do art. 129 da CF, acresça atribuições ao MP local
relacionadas à defesa da criança e do adolescente, é consentânea
com a vocação constitucional do
Parquet. Na mesma linha, é a
jurisprudência do STJ em assegurar ao MP, dada a qualidade dos
interesses envolvidos, a defesa dos direitos da criança e do
adolescente,
independentemente de se tratar de pessoa individualizada (AgRg no REsp
1.016.847-SC, Segunda Turma, DJe 7/10/2013; e EREsp 488.427-SP, Primeira
Seção, DJe 29/9/2008). Ademais, não há como diferenciar os interesses
envolvidos
para que apenas alguns possam ser tutelados pela atuação do MP,
atribuindo-lhe legitimidade, por exemplo, em ações que busquem
tratamento médico de criança e subtraindo dele a legitimidade para
ações de alimentos, haja vista que tanto o direito à saúde quanto o
direito à alimentação são garantidos diretamente pela CF com prioridade
absoluta (art. 227, caput), de modo que o MP detém
legitimidade para buscar, identicamente, a concretização, pela via
judicial, de ambos. Além disso, não haveria lógica em reconhecer ao MP
legitimidade para ajuizamento de ação de
investigação de paternidade cumulada com alimentos, ou mesmo a
legitimidade recursal em ações nas quais intervém – como reiteradamente
vem decidindo a jurisprudência do STJ (REsp 208.429-MG, Terceira Turma,
DJ 1/10/2001; REsp 226.686-DF, Quarta Turma, DJ 10/4/2000) –,
subtraindo-lhe essa legitimação para o ajuizamento de ação unicamente de
alimentos, o que contrasta com o senso segundo o qual quem pode mais
pode menos. De
mais a mais, se corretamente compreendida a ideologia jurídica sobre a
qual o ECA, a CF e demais diplomas internacionais foram erguidos, que é a
doutrina da proteção integral, não se afigura acertado inferir
que o art. 201, III, do ECA – segundo o qual compete ao MP promover e
acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e
destituição do poder familiar, nomeação e
remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os
demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da
Juventude – só tenha aplicação nas
hipóteses previstas no art. 98 do mesmo diploma, ou seja, quando houver
violação de direitos por parte do Estado, por falta, omissão ou abuso
dos pais ou em razão da conduta da criança ou adolescente, ou ainda
quando não houver exercício do poder familiar. Isso porque essa solução
implicaria ressurgimento do antigo paradigma superado pela
doutrina da proteção integral, vigente durante o Código de
Menores, que é a
doutrina do menor em situação irregular. Nesse contexto, é decorrência lógica da
doutrina da proteção integral
o princípio da intervenção
precoce, expressamente consagrado no art. 100, parágrafo único, VI, do
ECA, tendo em vista que há que se antecipar a atuação do Estado
exatamente para que o infante não caia no que o Código de Menores
chamava situação irregular, como nas hipóteses de maus-tratos, violação
extrema de direitos por parte dos pais e demais familiares. Além do
mais, adotando-se a solução contrária,
chegar-se-ia em um círculo vicioso: só se franqueia ao MP a legitimidade
ativa se houver ofensa ou ameaça a direitos da criança ou do
adolescente, conforme previsão do art. 98 do ECA. Ocorre que é
exatamente
mediante a ação manejada pelo MP que se investigaria a existência de
ofensa ou ameaça a direitos. Vale dizer, sem ofensa não há ação, mas sem
ação não se descortina eventual
ofensa. Por fim, não se pode confundir a substituição processual do MP –
em razão da qualidade dos direitos envolvidos, mediante a qual se
pleiteia, em nome próprio, direito alheio –, com a
representação processual da Defensoria Pública. Realmente, o fato de
existir Defensoria Pública relativamente eficiente na comarca não se
relaciona com a situação que, no mais das vezes, justifica a
legitimidade do MP, que é a omissão dos pais ou responsáveis na
satisfação dos direitos mínimos da criança e do adolescente, notadamente
o direito à alimentação. É bem de ver
que – diferentemente da substituição processual do MP – a assistência
judiciária prestada pela Defensoria Pública não dispensa a manifestação
de vontade do assistido ou de quem lhe
faça as vezes, além de se restringir, mesmo no cenário da Justiça da
Infância, aos necessitados, no termos do art. 141, § 1º, do ECA. Nessas
situações, o ajuizamento da ação de
alimentos continua ao alvedrio dos responsáveis pela criança ou
adolescente, ficando condicionada, portanto, aos inúmeros interesses
rasteiros que, frequentemente, subjazem ao relacionamento desfeito dos
pais. Ademais, sabe-se que,
em não raras vezes, os alimentos são pleiteados com o exclusivo
propósito de atingir o ex-cônjuge, na mesma frequência em que a pessoa
detentora da guarda do filho se omite no ajuizamento da demanda quando
ainda
remanescer esperança no restabelecimento da relação. Enquanto isso, a
criança aguarda a acomodação dos interesses dos pais, que nem sempre
coincidem com os seus.
REsp 1.265.821-BA e REsp 1.327.471-MT, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgados em 14/5/2014.